segunda-feira, 27 de abril de 2009

Uma filosofia de vida

Sempre concordei com os conceitos sydfieldianos* sobre como escrever um roteiro, cujo principal mandamento diz que uma história precisa ter um plot – que é aquele momento-chave que faz a trajetória das personagens deslanchar, ou seja, um objetivo que o protagonista precisa atingir, como conquistar um grande amor, desvendar as razões de uma morte misteriosa ou descobrir a cura de um novo vírus mortal.

Mas não lembro de ter visto um filme sem plots que tenha dado tão certo quanto “Simplesmente feliz” (“Happy-Go-Lucky”, no original). O filme é centrado na professora primária Poppy, vivida brilhantemente por Sally Hawkins. Solteira, 30 anos, sem filhos, Poppy divide um apartamento com uma amiga, também professora, e encara a vida sempre com um sorriso estampado no rosto.

O fio condutor da história é a relação de Poppy e Scott (Eddie Marsan), seu instrutor de direção. A professora decide aprender a dirigir quando sua bicicleta é roubada. O contraste perfeito entre o positivismo de Poppy e o mau humor do instrutor rende ótimos momentos. O último encontro dos dois, aliás, é emocionante.

Outra ótima sequencia do filme, mas totalmente oposta, é a primeira aula de flamenco. As instruções da intensa e obsessiva professora espanhola nos faz grudar na tela, mas as expressões de Poppy seguindo à risca o que era pedido são impagáveis.

Se o excesso de otimismo da professora pode parecer artificial, em alguns momentos, o roteiro nos revela, sutilmente, conflitos enfrentados interna e externamente por Poppy que a tornam mais humana. Ao mesmo tempo que adota o bom humor como filosofia de vida, Poppy não foge dos problemas e enfrenta-os com coragem e determinação. A preocupação com um aluno de comportamento agressivo, a relação amorosa com um colega de trabalho, a complicada e com sua irmã e a paixão inesperada de que é alvo são exemplos disso. Grandes sacadas do roteiro de Mike Leigh na construção da personagem.

A trilha sonora alegre e as roupas coloridas e extravagantes também estão em perfeita sintonia com a personalidade de Poppy, que é capaz de sorrir e se divertir mesmo em pé em um ônibus lotado e depois de quase cair quando o motorista faz uma curva brusca.

Acostumado com tramas complexas e mais dramáticas, como em “Segredos e Mentiras” e “O Segredo de Vera Drake”, o diretor britânico acerta em cheio ao trabalhar com personalidades tão diferentes e complicadas em certos aspectos, de maneira tão leve e despretensiosa, e nos presenteia com um filme cativante, simpático e divertido, mas ao mesmo tempo, denso e inteligente.

O filme mostra que ver o lado bom das coisas pode ajudar a levar uma vida mais saudável e menos estressante. Se roubarem sua bicicleta, veja isso como um incentivo para tirar a carteira de motorista! Não é, porém, uma questão de se anular, deixar de se expressar, muito pelo contrário. Poppy nos mostra que temos que fazer o que temos vontade, seja pular em uma cama elástica, dançar flamenco ou ficar bêbado em uma balada com os amigos, e tentar não deixar ser reprimido pelos outros. A vida é simples como a felicidade, quem a complica somos nós.


* Syd Field é o mais popular professor de roteiro de Hollywood, autor do livro “Manual do roteiro”, uma espécie de bíblia para os roteiristas, mas também alvo de críticas devido a certos paradigmas que hoje são considerados ultrapassados e limitados.

FICHA TÉCNICA

Título: "Simplesmente feliz"
Título original: Happy-Go-Lucky
País: Reino Unido
Ano: 2008
Direção: Mike Leigh
Roteiro: Mike Leigh
Elenco principal: Sally Hawkins, Elliot Cowan, Alexis Zegerman, Andrea Riseborough, Sinead Matthews, Kate O'Flynn, Sarah Niles.
Duração: 118 min.
Gênero: Comédia
Sinopse: Poppy (Sally Hawkins) é uma mulher de 30 anos recém-completos que só sorri. Professora de crianças, tenta levar a vida numa boa, apesar de sem sempre ser compreendida. Isso é o que descobre quando resolve tirar a carta de motorista e encontra um instrutor (Eddie Marsan) que tem o oposto de seu positivismo.
Estréia: 27 de março de 2009

Um comentário:

  1. sabe eu gostei do filme até, mas o exagero no tom feliz da personagem me incomodou um pouco. Não no sentido da felicidade, mas no quanto aquilo era artificial demais que me impedia de em alguns momentos entrar na ambiencia da narrativa. Funciona com os contrastes? sim. O conceito de ser feliz consigo mesmo (ela não precisava de um amor ou coisas externas, por isso a narrativa ser tão diluida, ela se bastava feliz consigo) é bem interessante e me motivou bastante, mas tem horas que irritava até! hauhauha
    :D
    abç

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